Os
fundamentos do Serviço Social na contemporaneidade[1]
Maria Carmelita Yazbek
APRESENTAÇÃO
Este texto coloca em questão os fundamentos históricos e
teórico/metodológicos do Serviço Social brasileiro na contemporaneidade,
particularizando as décadas de 80, 90 e os primeiros anos do século XXI.
Algumas referências acerca do Serviço Social latino-americano também serão
apresentadas. Parte do pressuposto de que a profissão e o conhecimento que a
ilumina, se explicam no movimento histórico da sociedade. Sociedade que é
produto de relações sociais, de ações recíprocas dos homens entre si, no
complexo processo de reprodução social da vida. O mundo social é um mundo de
relações.
São múltiplas as mediações que constituem o tecido de relações sociais
que envolvem esse processo de produção e reprodução social da vida em suas
expressões materiais e espirituais. Essas relações que constituem a
sociabilidade humana, implicam âmbitos diferenciados e uma trama que envolve o
social, o político, o econômico, o cultural,
o religioso, as questões de genêro, a idade, a etnia etc. Dimensões com
as quais se defronta cotidianamente o Serviço Social e em relação às quais se
posiciona quer do ponto de vista
explicativo quer do interventivo, considerados nesta abordagem como dimensões
de uma mesma totalidade.
A análise dos principais fundamentos que configuram o processo através
do qual a profissão busca explicar e intervir sobre a realidade, definindo
sua direção social, constitui o principal objetivo deste texto. É
necessário assinalar que essa análise das principais tendências históricas e
teórico metodológicas da profissão, sobretudo nas três últimas décadas não é tarefa fácil ou simples, pois exige o conhecimento do processo
histórico de constituição das principais matrizes de conhecimento do social, do complexo movimento histórico da sociedade capitalista brasileira e do
processo pelo qual o Serviço Social incorpora e elabora análises sobre a
realidade em que se insere e explica sua própria intervenção.
Assim
sendo, este texto apresenta-se organizado em quatro partes: em uma primeira
introdutória, onde são apresentados alguns fundamentos relativos ao processo
histórico de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação do
Serviço Social brasileiro e em três outras, nas quais se busca uma aproximação
às principais tendências históricas e
teórico metodológicas do debate profissional nos anos 80, 90 e 2000. Encerram o
texto algumas reflexões acerca das polêmicas atuais da profissão.
1 - INTRODUÇÃO: O processo de constituição das principais
matrizes do conhecimento e da ação do Serviço Social brasileiro
A questão inicial que se coloca
é explicitar como se constituem e se
desenvolvem no Serviço Social brasileiro
as tendências de análise e as
interpretações acerca de sua própria intervenção e sobre a realidade social na
qual se move. É claro que estas
tendências, derivadas das transformações sociais que vem particularizando o
desenvolvimento do capitalismo em nossa sociedade, não se configuram como
homogêneas, mas são permeadas por
diversas clivagens, tensões e confrontos internos. Isso porque, a compreensão
teórico/metodológica da realidade, fundada
no acervo intelectual que se constituiu a partir das as principais
matrizes do pensamento social e de suas expressões nos diferentes campos do
conhecimento humano, é processo que se constrói na interlocução com o próprio movimento da sociedade.
O ponto de partida consiste, pois, da análise ainda que sumária, do
processo de incorporação pela profissão:
- de idéias e conteúdos doutrinários do pensamento social da Igreja
Católica, em seu processo de institucionalização no Brasil,
- das principais matrizes teórico metodológicas acerca do conhecimento
do social na sociedade
burguesa.
Tecer algumas considerações sobre
este processo é buscar
compreender diferentes posicionamentos,
lógicas e estratégias que permearam o
pensamento e a ação profissional do serviço social em sua trajetória e que
persistem até os dias atuais com novas articulações, expressões e redefinições.
Quanto ao primeiro aspecto, é por demais conhecida a relação entre a
profissão e o ideário católico na gênese do Serviço Social brasileiro, no
contexto de expansão e secularização do mundo capitalista. Relação que vai
imprimir à profissão caráter de apostolado
fundado em uma abordagem da "questão social" como problema moral e
religioso e numa intervenção que prioriza
a formação da família e do indivíduo para solução dos problemas e
atendimento de suas necessidades materiais, morais e sociais. O contributo do
Serviço Social neste momento, incidirá sobre valores e comportamentos de seus
"clientes" na perspectiva de sua integração à sociedade, ou melhor
nas relações sociais vigentes.
Os referenciais orientadores do pensamento e da ação do emergente Serviço Social tem sua fonte na
Doutrina Social da Igreja, no ideário franco-belga de ação social e no pensamento de São Tomás de Aquino (séc.
XII): o tomismo e o neotomismo (retomada
em fins do século XIX do pensamento tomista
por Jacques Maritain na França e pelo Cardeal Mercier na Bélgica tendo
em vista "aplicá-lo" às
necessidades de nosso tempo).
É, pois, na relação com a Igreja Católica que o Serviço Social
brasileiro vai fundamentar a formulação
de seus primeiros objetivos político/sociais orientando-se por posicionamentos
de cunho humanista conservador
contrários aos ideários liberal e marxista na busca de recuperação da
hegemonia do pensamento social da Igreja face à "questão social".
Entre os postulados filosóficos tomistas que marcaram o emergente Serviço
Social temos a noção de dignidade da pessoa humana; sua perfectibilidade, sua
capacidade de desenvolver potencialidades; a natural sociabilidade do homem,
ser social e político; a compreensão da sociedade como união dos homens para
realizar o bem comum ( como bem de todos) e a necessidade da autoridade para
cuidar da justiça geral.
No que se refere à Doutrina Social da Igreja merecem destaque nesse
contexto as encíclicas “Rerum Novarum” do Papa
Leão XIII de 1891, que vai iniciar o magistério social da Igreja no
contexto de busca de restauração de seu papel social sociedade moderna e a “Quadragésimo Anno” de Pio XI de 1931
que, comemorando 40 anos da “Rerum
Novarum”” vai tratar da questão social, apelando
para a renovação moral da sociedade e a adesão
à Ação Social da Igreja.
É necessário assinalar que esta matriz encontra-se na gênese da
profissão em toda a América Latina, embora com particularidades diversas como
por exemplo na Argentina e no Chile onde vai somar-se ao racionalismo
higienista. (ideário do movimento de médicos higienistas que exigiam a
intervenção ativa do Estado sobre a
questão social pela criação da assistência pública que deveria assumir um amplo
programa preventivo na área sanitária, social e moral)
O conservadorismo católico que
caracterizou os anos iniciais do Serviço
Social brasileiro começa, especialmente a partir dos anos 40, a ser tecnificado ao
entrar em contato com o Serviço Social norteamericano e suas propostas de
trabalho permeados pelo caráter
conservador da teoria social positivista.
Efetivamente, a reorientação da profissão, para atender às novas
configurações do desenvolvimento capitalista,
exige a qualificação e sistematização de seu espaço
socio-ocupacional tendo em vista atender
às requisições de um Estado que começa a implementar políticas no campo social.
Nesse contexto, a legitimação do
profissional, expressa em seu
assalariamento e ocupação de um espaço na divisão sócio técnica do trabalho, vai colocar o emergente Serviço Social brasileiro frente
à matriz positivista, na perspectiva de ampliar seus referenciais técnicos para
a profissão. Este processo, que vai constituir
o que Iamamoto (1992:21) denomina de
"arranjo teórico doutrinário", caracterizado pela junção do discurso
humanista cristão com o suporte técnico-científico de inspiração na teoria social positivista, reitera para a profissão o caminho do
pensamento conservador (agora, pela mediação
das Ciências Sociais)
Cabe aqui uma explicação: nem o doutrinarismo, nem o
conservadorismo constituem teorias
sociais. A doutrina caracteriza-se por ser uma visão de mundo abrangente fundada na fé em dogmas. Constitui-se
de um conjunto de princípios e crenças que servem como suporte a um sistema
religioso, filosófico, político, entre outros. O conservadorismo como forma de
pensamento e experiência prática é
resultado de um contramovimento aos
avanços da modernidade, e nesse sentido, suas reações são restauradoras e preservadoras,
particularmente da ordem capitalista. A teoria social por sua vez constitui
conjunto explicativo totalizante, ontológico, e portanto organicamente
vinculado ao pensamento filosófico, acerca
do ser social na sociedade burguesa, e a seu processo de constituição e de reprodução. A teoria
reproduz conceitualmente o real, é portanto, construção intelectual que proporciona
explicações aproximadas da realidade e, assim sendo, supõe uma forma de
auto-constituição, um padrão de elaboração: o método. Neste sentido, cada
teoria social é um método de abordar o real. O método é pois a trajetória teórica, o movimento teórico que se observa
na explicação sobre o ser social. É o posicionamento do sujeito que investiga face ao investigado
e desta forma é "questão da teoria
social e não problema particular desta ou daquela 'disciplina'."
(Netto,1984,14)
No caso do Serviço Social, um primeiro suporte teórico-metodológico
necessário à qualificação técnica de sua prática e à sua modernização vai ser
buscado na matriz positivista e em sua apreensão manipuladora, instrumental e
imediata do ser social. Este horizonte analítico aborda as relações sociais dos
indivíduos no plano de suas vivências imediatas, como fatos, como dados, que se
apresentam em sua objetividade e imediaticidade. O método positivista, trabalha
com as relações aparentes dos fatos, evolui dentro do já contido e busca a
regularidade, as abstrações e as
relações invariáveis.
É a perspectiva positivista que restringe a visão de teoria ao âmbito do
verificável, da experimentação e da fragmentação. Não aponta para mudanças, senão
dentro da ordem estabelecida, voltando-se antes para ajustes e conservação.
Particularmente em sua orientação funcionalista, esta perspectiva é absorvida
pelo Serviço Social, configurando para a profissão propostas de trabalho
ajustadoras e um perfil manipulatório, voltado para o aperfeiçoamento dos
instrumentos e técnicas para a intervenção, com as metodologias de ação, com a
"busca de padrões de eficiência, sofisticação de modêlos de análise,
diagnóstico e planejamento; enfim, uma tecnificação da ação profissional que é
acompanhada de uma crescente burocratização das atividades
institucionais." (Yazbek, 1984,71)
O questionamento a este referencial, tem
início no contexto de mudanças econômicas, políticas, sociais e
culturais que expressam, nos anos 60, as novas configurações que
caracterizam a expansão do capitalismo mundial, que impõem à América Latina um
estilo de desenvolvimento excludente e subordinado. A profissão assume as
inquietações e insatisfações deste momento histórico e direciona seus questionamentos
ao Serviço Social tradicional através de um amplo movimento, de um processo de
revisão global, em diferentes níveis:
teórico, metodológico, operativo e político. Este movimento de renovação que surge no Serviço Social na sociedade latino-americana impõe aos assistentes sociais a necessidade
de construção de um novo projeto comprometido com as demandas das classes
sublternas, particularmente expressas
em suas mobilizações. É no bojo deste movimento, de questionamentos à
profissão, não homogêneos e em conformidade com as realidades
de cada país, que a interlocução com o marxismo vai configurar
para o Serviço Social latinoamericano a apropriação de outra matriz teórica: a
teoria social de Marx. Embora esta
apropriação se efetive em tortuoso processo.
É importante assinalar que é no âmbito do movimento de Reconceituação e
em seus desdobramentos, que se definem de forma mais clara e se confrontam, diversas tendências voltadas
a fundamentação do exercício e dos posicionamentos teóricos do Serviço Social.
Tendências que resultam de conjunturas
sociais particulares dos países do Continente e que levam, por exemplo no
Brasil, o movimento em seus primeiros momentos, (em tempos de ditadura militar
e de impossibilidade de contestação política) a priorizar um projeto
tecnocrático/modernizador, do qual Araxá
e Terezóplois são as melhores expressões.
Já o tronco latino americano do movimento, sobretudo no Cone Sul, assume
claramente uma perspectiva crítica de contestação política e a proposta de transformação
social. Posição que, dificilmente poderá levar à prática frente à
explosão de governos militares ditatoriais e pela ausência de suportes teóricos
claros.
Sem dúvida, as ditaduras que
tiveram vigência no Continente deixaram suas marcas nas ciências sociais
e na profissão, que depois de avançar
em uma produção crítica nos anos 60/70 (nos países onde isso foi permitido) é
obrigada a longo silêncio.
Até o final da década de 70, o pensamento de autores latino-americanos
ainda orienta, ao lado da iniciante produção brasileira (particularmente
divulgada pelo CBCISS), a formação e o
exercício profissional no país. Situação
que, aos poucos vai-se modificando
com o desenvolvimento do debate e
da produção intelectual do Serviço Social brasileiro e que resulta de
desdobramentos e da explicitação das
seguintes vertentes de análise que
emergiram no bojo do Movimento de
Reconceituação:
- a vertente modernizadora
(Netto:1994: 164 e ss) caracterizada pela
incorporação de abordagens funcionalistas, estruturalistas e mais tarde
sistemicas (matriz positivista), voltadas a uma modernização conservadora e à melhoria do
sistema pela mediação do desenvolvimento social e do enfrentamento da
marginalidade e da pobreza na perspectiva de integração da sociedade. Os
recursos para alcançar estes objetivos são buscados na modernização tecnológica
e em processos e relacionamentos interpessoais. Estas opções configuram um
projeto renovador tecnocrático fundado na busca da eficiência e da eficácia que devem nortear a
produção do conhecimento e a intervenção profissional;
- a vertente inspirada na fenomenologia, que emerge como metodologia
dialógica, apropriando-se também da visão de pessoa e comunidade de E. Mounier
(1936), dirige-se ao
vivido humano, aos sujeitos em
suas vivências, colocando para o Serviço Social a tarefa de "auxiliar na
abertura desse sujeito existente, singular, em relação aos outros, ao mundo de
pessoas" (Almeida, 1980:114). Esta tendência que no Serviço Social
brasileiro vai priorizar as concepções
de pessoa, diálogo e transformação social
(dos sujeitos) é analisada por Netto (1994: 201 e ss) como uma forma de
reatualização do conservadorismo presente no pensamento inicial da profissão;
- a vertente marxista que remete
a profissão à consciência de sua
inserção na sociedade de classes e que no Brasil vai configurar-se, em um
primeiro momento, como uma aproximação ao marxismo sem o recurso ao pensamento
de Marx.
Efetivamente, a apropriação da vertente marxista no Serviço Social (brasileiro
e latino-americano) não se dá sem incontáveis problemas, que aqui não
abordaremos, e que se caracterizam, quer pelas abordagens reducionistas dos
marxismos de manual, quer pela
influência do cientificismo e do formalismo metodólogico (estruturalista) presente no "marxismo"
althusseriano (referência a Louis Althusser, filosofo françês cuja leitura da
obra de Marx vai influenciar a proposta marxista do Serviço Social nos anos
60/70 e particularmente o Método de B.H. Um marxismo equivocado que recusou a
via institucional e as determinações sócio históricas da profissão.
No entanto, é com este referencial, precário em um primeiro momento, do
ponto de vista teórico, mas posicionado do ponto de vista sócio-político,
que a profissão questiona sua prática institucional e seus objetivos de
adaptação social ao mesmo tempo em que se aproxima dos movimentos sociais.
Inicia-se aqui a vertente comprometida com a ruptura (Netto,1994:247 e ss) com
o Serviço Social tradicional.
Estas tendências, que configuram para a profissão linhas diferenciadas
de fundamentação teórico-metodológica
tenderão a acompanhar a
trajetória do pensamento e da ação profissional nos anos subsequentes ao movimento
de Reconceituação e se conservarão presentes até os anos recentes, apesar de
seus movimentos, redefinições e
da emergência de novos referenciais nesta transição de
milênio.
Questões para reflexão: Como se
constituem e se desenvolvem no Serviço Social brasileiro as primeiras interpretações sobre sua própria intervenção e sobre a
realidade social?
Quais as principais vertentes de
análise definem-se para a profissão no âmbito do Movimento de
Reconceituação?
2 - O Serviço Social nos anos 80: as
tendências históricas e teórico
metodológicas do debate profissional
É sobretudo com Iamamoto (1982) no início dos anos 80 que a teoria social de Marx inicia sua efetiva
interlocução com a profissão. Como
matriz teórico-metodológica esta teoria
apreende o ser social a partir de mediações. Ou seja, parte da posição de
que a natureza relacional do ser social não é percebida em sua imediaticidade.
"Isso porque, a estrutura de nossa sociedade, ao mesmo tempo em que põe o
ser social como ser de relações, no mesmo instante e pelo mesmo processo, oculta a natureza dessas relações ao
observador" (Netto, 1995) Ou seja as relações sociais são sempre
mediatizadas por situações, instituições etc, que ao mesmo tempo
revelam/ocultam as relações sociais imediatas. Por isso nesta matriz o ponto de
partida é aceitar fatos, dados como indicadores, como sinais mas não
como fundamentos últimos do horizonte analítico. Trata-se portanto de um
conhecimento que não é manipulador e que
apreende dialéticamente a realidade
em seu movimento contraditório.
Movimento no qual e através do qual se engendram, como totalidade, as relações
sociais que configuram a sociedade capitalista.
É no âmbito da adoção do marxismo como referência analítica, que se
torna hegemônica no Serviço Social no país, a abordagem da profissão como componente da organização da sociedade
inserida na dinâmica das relações sociais
participando do processo de
reprodução dessas relações.(cf. Iamamoto, 1982)
Este referencial, a partir dos anos
80 e avançando nos anos 90, vai
imprimir direção ao pensamento e à ação do Serviço Social no país. Vai permear as ações voltadas à
formação de assistentes sociais na sociedade brasileira (o currículo de 1982 e
as atuais diretrizes curriculares); os eventos acadêmicos e aqueles resultantes
da experiência associativa dos profissionais, como suas Convenções, Congressos,
Encontros e Seminários; esta presente na regulamentação legal do exercício
profissional e em seu
Código de Ética. Sob
sua influência ganha visibilidade um
novo momento e uma nova qualidade no processo de recriação da profissão
na busca de sua ruptura com seu histórico conservadorismo (cf. Netto, 1996:111) e no avanço da produção de
conhecimentos, nos quais a tradição marxista aparece
hegemonicamente como uma das referências
básicas. Nesta tradição o Serviço Social vai apropriar-se a partir dos anos 80 do pensamento de Antonio
Gramsci e particularmente de suas abordagens acerca do Estado, da sociedade
civil, do mundo dos valores, da ideologia, da hegemonia, da subjetividade e da
cultura das classes subalternas. Vai chegar a Agnes Heller e à sua
problematização do cotidiano, à Georg Lukács e à sua ontologia do ser social
fundada no trabalho, à E.P. Thompson e à
sua concepção acerca das
"experiências humanas", à Eric Hobsbawm um dos mais importantes historiadores marxistas da
contemporaneidade e a tantos outros cujos pensamentos começam a permear nossas
produções teóricas, nossas reflexões e
posicionamentos ídeo-políticos.
Obviamente, este processo de
construção da hegemonia de novos
referenciais teórico-metodológicos e interventivos, a partir da tradição
marxista, para a profissão ocorre em um amplo debate em diferentes fóruns de natureza acadêmica
e/ou organizativa, além de permear a produção intelectual da área. Trata-se de um debate plural, que implica na
convivência e no diálogo de diferentes tendências mas que supõe uma direção hegemonica. A questão do
pluralismo, sem dúvida uma das questões do tempo presente, desde aos anos 80
vem-se constituindo objeto de polêmicas
e reflexões do Serviço Social. Temática complexa que constitui como afirma Coutinho
(1991:5/15) um fenômeno do mundo moderno
e da visão individualista do homem. É o autor em questão que
problematiza a proposta de hegemonia com pluralismo, no
necessário diálogo e no debate de
idéias, apontando os riscos de posicionamentos ecléticos (que conciliam o
inconciliável ao apoiarem-se em pensamentos divergentes).
Assim, em diferentes espaços, o
conjunto de tendências
teórico-metodológicas e posições ideo-políticas se confrontam, sendo
inegável a centralidade assumida pela
tradição marxista nesse processo.
Este debate se expressa na significativa produção teórica do Serviço Social brasileiro, que vem
gerando uma bibliografia própria , e que tem na criação e expansão da pós
graduação, com seus cursos de mestrado e doutorado, iniciada na década de 70,
um elemento impulsionador.
É importante lembrar que a pós graduação configura-se, por definição,
como espaço privilegiado de interlocução e diálogo entre as áreas do saber e
entre diversos paradigmas teórico-metodológicos. Neste espaço o Serviço Social
brasileiro vem dialogando e se apropriando do debate intelectual contemporâneo
no âmbito das ciências sociais do país e
do exterior. Também neste espaço, o Serviço Social brasileiro desenvolveu-se na
pesquisa acerca da natureza de sua intervenção, de seus procedimentos, de sua
formação, de sua história e sobretudo
acerca da realidade social, política, econômica e cultural onde se insere como
profissão na divisão social e técnica do trabalho. Avançou na compreensão do
Estado capitalista, das políticas sociais, dos movimentos sociais, do poder
local, dos direitos sociais, da cidadania, da democracia, do processo de
trabalho, da realidade institucional e de outros tantos temas. Enfrentou o
desafio de repensar a assistência social colocando-a como objeto de suas
investigações. Obteve o respeito de seus pares no âmbito interdisciplinar e
alcançou visibilidade na interlocução com as ciências sociais, apesar das
dificuldades decorrentes da falta de
experiência em pesquisa, do fato de defrontar com restrições por se constituir em disciplina interventiva
(de "aplicação") e das dificuldades na apropriação das teorias
sociais. Nesta década o serviço Social ganha espaço no CNPq como área de
pesquisa.
Cabe também assinalar que nos anos 80 começam a se colocar para o Serviço
Social brasileiro demandas, em nível de pós graduação, de instituições
portuguesas, e latino americanas (Argentina, Uruguai, Chile), o que vem permitindo
ampliar a influência do pensamento profissional brasileiro nestes países.
Também no âmbito da organização e representação profissional o quadro
que se observa no Serviço Social brasileiro é de maturação. (Netto,
1996:108/111) Maturação que expressa na passagem dos anos 80 para os anos 90
rupturas com o seu tradicional conservadorismo, embora como bem lembre o autor " essa ruptura não signifique que o
conservadorismo (e com ele, o reacionarismo) foi superado no interior da
categoria profissional" (111).Pois, a herança conservadora e antimoderna, constitutiva da gênese da profissão
atualiza-se e permanece presente nos tempos de hoje. Essa maturidade
profissional que avança no início do novo milênio, se expressa pela
democratização da convivência de diferentes posicionamentos teórico-metodológicos
e ídeo-políticos desde o final da década
de 1980. Maturação que ganhou visibilidade na sociedade brasileira, entre
outros aspectos, pela intervenção dos assistentes sociais, através de seus
organismos representativos, nos processos de elaboração e implementação da Lei
Orgânica da Assistência Social - LOAS (dezembro de 1993). É também no âmbito da
implementação da LOAS,e de outras políticas sociais públicas, com os processos
descentralizadores que se instituem no país, no âmbito dessas políticas, que observa-se
a diversificação das demandas ao profissional de serviço social.
É nesse contexto histórico, pós Constituição de 1988 que os
profissionais de serviço social, iniciam o processo de ultrapassagem da
condição de executores de políticas sociais, para assumir posições de
planejamento e gestão dessas políticas.
A conjuntura econômica é dramática, dominada pela distância entre
minorias abastadas e massas miseráveis.
Não devemos esquecer que nos anos 80 (a “década perdida” do ponto de
vista econômico para a CEPAL) a pobreza vai se converter em tema central na
agenda social, quer por sua crescente visibilidade, pois a década deixou um
aumento considerável do número absoluto de pobres, quer pelas pressões de
democratização que caracterizaram a transição. A situação de endividamento (que
cresce 61% nos anos 80), a presença dos organismos de Washington (FMI, Banco
Mundial), o consenso de Washington, as reformas neoliberais e a redução da
autonomia nacional, a adoção de medidas econômicas e o ajuste fiscal vão se
expressar no crescimento dos índices de pobreza e indigência. É sempre oportuno lembrar que, nos anos 80 e 90 a somatória de extorsões
que configurou um novo perfil para a questão social brasileira, particularmente
pela via da vulnerabilização do trabalho, conviveu com a erosão do sistema
público de proteção social, caracterizada por uma perspectiva de retração dos
investimentos públicos no campo social,
seu reordenamento e pela crescente subordinação das políticas sociais às
políticas de ajuste da economia, com suas restrições aos gastos públicos e sua
perspectiva privatizadora. (Cf. Yazbek, 2004)
É nesse contexto, e na “contra
mão” das transformações que ocorrem na ordem econômica internacional
mundializada que o Brasil vai instituir
constitucionalmente em 1988, seu sistema de Seguridade Social.
Questão para reflexão: Quais as
tendências mais relevantes do Serviço
Social nos anos 80 do ponto de vista da
produção de conhecimentos e do exercício profissional?
3 - O Serviço Social nos anos 90: as tendências históricas e
teórico-metodológicas do debate profissional
Inicialmente, não podemos esquecer que, nos marcos da reestruturação dos
mecanismos de acumulação do capitalismo globalizado, os anos 80 e 90 foram anos
adversos para as políticas sociais e
se constituíram em terreno
particularmente fértil para o avanço da
regressão neoliberal que erodiu as bases dos sistemas de proteção social e
redirecionou as intervenções do Estado em relação à questão social. Nestes
anos, em que as políticas sociais vem sendo objeto de um processo de
reordenamento, subordinado às políticas de estabilização da economia, em que a
opção neoliberal na área social passa,
pelo apelo à filantropia e à
solidariedade da sociedade civil e por programas seletivos e focalizados de combate à pobreza no âmbito
do Estado (apesar da Constituição de 1988),
novas questões se colocam ao Serviço Social, quer do ponto de vista de
sua intervenção, quer do ponto de vista da construção de seu corpo de
conhecimentos.
Assim, a profissão enfrenta o desafio de decifrar algumas lógicas do
capitalismo contemporâneo particularmente em relação às mudanças no mundo do
trabalho e sobre os processos desestruturadores dos sistemas de proteção social
e da política social em
geral. Lógicas que reiteram a desigualdade e constroem
formas despolitizadas de abordagem da questão social, fora do mundo
público e dos fóruns democráticos de representação e negociação dos interesses
em jogo nas relações Estado / Sociedade.
Efetivamente, a opção neoliberal por programas seletivos e focalizados de combate à pobreza e o avanço
do ideário da "sociedade solidária" que implica no deslocamento para
sociedade das tarefas de enfrentar a pobreza e a exclusão social, começa a
parametrar diferentes modalidades de intervenção no campo social na sociedade
capitalista contemporânea Exemplos desta opção podem ser observados em diversos
países do Continente latino-americano como no Chile e na Argentina.
Inserido neste processo contraditório o Serviço Social da década de 90,
se vê confrontado com este conjunto de transformações societárias no qual é
desafiado a compreender e intervir nas novas configurações e manifestações da
"questão social", que expressam a precarização do trabalho e a
penalização dos trabalhadores na sociedade
capitalista contemporânea.
Trata-se de um contexto em que são apontadas alternativas privatistas e
refilantropizadas para questões relacionadas à pobreza e à exclusão social. Cresce
o denominado terceiro setor, amplo conjunto de organizações e iniciativas
privadas, não lucrativas, sem clara definição, criadas e mantidas com o apoio do
voluntariado e que desenvolvem suas ações no campo social, no âmbito de um vastíssimo
conjunto de questões, em espaços de desestruturação (não de eliminação) das políticas
sociais, e de implementação de novas estratégias programáticas como, por
exemplo, os programas de Transferência de Renda, em suas diferentes modalidades.
Nessa conjuntura, emergem processos e dinâmicas que trazem para a
profissão, novas temáticas, novos, e os de sempre, sujeitos sociais e questões
como: o desemprego, o trabalho precário, os sem terra, o trabalho infantil, a
moradia nas ruas ou em condições de insalubridade, a violência doméstica, as
discriminações por questões de gênero e etnia, as drogas, a expansão da AIDS,
as crianças e adolescentes de rua, os doentes mentais, os indivíduos com
deficiências, o envelhecimento sem recursos, e outras tantas questões e
temáticas relacionadas à pobreza, à subalternidade e à exclusão com suas
múltiplas faces.
Ao longo da década a profissão se coloca diante destas e de outras
questões. Destacam-se como alguns dos eixos articuladores do debate
profissional e que tem rebatimentos em sua ação e produção:
- a Seguridade Social, em construção no país, após a Carta
Constitucional de 1988, que afirma o direito dos cidadãos brasileiros a um
conjunto de direitos no âmbito das políticas sociais.(Saúde, Previdência e
Assistência Social). A noção de Seguridade supõe que os cidadãos tenham acesso
a um conjunto de certezas e seguranças que cubram, reduzam ou previnam
situações de risco e de vulnerabilidades sociais. Essa cobertura é social e não
depende do custeio individual direto. A inserção do Serviço Social brasileiro
nos debates sobre essa cobertura social marcou
a década;
- a Assistência Social, qualificada como política pública, de Proteção
Social, constitutiva da Seguridade Social, constituiu-se em tema de estudos,
pesquisas e campo de interlocução do Serviço Social com amplos movimentos da
sociedade civil que envolveram fóruns políticos, entidades assistenciais e
representativas dos usuários de serviços assistenciais;
- a questão
da municipalização e da descentralização das políticas sociais públicas e
outros aspectos daí decorrentes, seja na ótica da racionalização de recursos,
humanos e sociais com vistas a seus efetivos resultados, tanto na perspectiva
de aproximar a gestão destas políticas dos cidadãos. Notável é desde os anos
1990, em todo o território nacional a presença e o protagonismo do assistente
social em fóruns e conselhos vinculados às políticas de saúde, de assistência
social, da criança e do adolescente, entre outras, participando ativamente na
defesa de direitos e no controle social das políticas públicas.
É importante observar que esta presença tem início em uma conjuntura
contraditória e adversa, na qual os impactos devastadores sobre o processo de
reprodução social da vida se fazem notar de múltiplas formas, mas sobretudo
pela precarização do trabalho e pela desmontagem de direitos.
É
fundamental assinalar que as transformações societárias que caracterizam esta
década, vão encontrar um Serviço Social consolidado e maduro na sociedade
brasileira, uma profissão com avanços e acúmulos, que, ao longo desta década
construiu, com ativa participação da categoria profissional, através de suas
entidades representativas um projeto ético político profissional para o Serviço
Social brasileiro, que integra valores, escolhas teóricas e interventivas,
ideológicas, políticas, éticas, normatizações acerca de direitos e deveres,
recursos político-organizativos, processos de debate, investigações e sobretudo
interlocução crítica com o movimento da sociedade na qual a profissão é parte e
expressão. (Cf. Netto, 1999)
A direção social que orienta este projeto de profissão tem como
referência a relação orgânica com o projeto das classes subalternas, reafirmado
pelo Código de Ética de 1993, pelas Diretrizes Curriculares de 1996 e pela
Legislação que regulamenta o exercício profissional (Lei nº 8662 de 07/06/93).
Cabe ainda assinalar outra questão que vem permeou o debate dos
assistentes sociais nesta conjuntura: trata-se
do movimento de precarização e de mudanças no mercado de trabalho dos
profissionais brasileiros, localizado no quadro mais amplo de desregulamentação
dos mercados de trabalho de modo geral, quadro em que se alteram as profissões,
redefinem-se suas demandas, monopólios de competência e as próprias relações de
trabalho. Aqui situamos processos como a terceirização, os contratos parciais,
temporários, a redução de postos de trabalho, a emergência de novos espaços de
trabalho como o Terceiro Setor, a exigência de novos conhecimentos
técnico-operativos, ao lado do declínio da ética do trabalho e do
restabelecimento exacerbado dos valores da competitividade e do individualismo.
Não podemos esquecer que a reestruturação dos mercados de trabalho no
capitalismo contemporâneo vem se fazendo via rupturas, apartheid e degradação
humana.
Do ponto de vista das referências teórico-metodológicas a questão
primeira que se coloca para a profissão já no início da década é o confronto
com a denominada "crise" dos modelos analíticos, explicativos nas
ciências sociais, que buscam captar o que está acontecendo no fim de século e
as grandes transformações que alcançam múltiplos aspectos da vida social. No
mundo do conhecimento começam as interferências, não sem conflitos, do
denominado pensamento pós moderno, "notadamente em sua versão
neoconservadora" (Netto,1996:114) que questiona e nivela os paradigmas
marxista e positivista. Estes questionamentos
se voltam contra os diferentes "modelos"
explicativos por suas macro abordagens apontando que nestas macro narrativas
são deixados de lado valores e sentimentos fundamentais dos homens, seu
imaginário, suas crenças, afeições, a beleza, os saberes do cotidiano, os
elementos étnicos, religiosos, culturais, os fragmentos da vida enfim. A
abordagem pós moderna dirige sua crítica
à razão afirmando-a como instrumento de
repressão e padronização, propõe a superação das utopias, denuncia a
administração e o disciplinamento da
vida, recusa a abrangência das teorias sociais com suas
análises totalizadoras e ontológicas
sustentadas pela razão e reitera a importância do fragmento, do
intuitivo, do efêmero e do microsocial (em si mesmos) restaurando o
pensamento conservador e antimoderno .
Seus questionamentos são também dirigidos à
ciência que esteve mais a serviço da dominação do que da felicidade dos
homens. Assim ao afirmar a rejeição à ciência o pensamento pós moderno rejeita
as categorias da razão (da Modernidade) que transformaram os modos de pensar da
sociedade mas não emanciparam o homem, não o fizeram mais feliz e não
resolveram problemas de sociedades que se complexificam e se desagregam. O posicionamento pós moderno busca resgatar
valores negados pela modernidade e cria um universo descentrado, fragmentado
relativo e fugaz. Para Harvey (1992) as caracteristicas da pós-modernidade são
produzidas historicamente e se relacionam com a emergência de modos mais
flexíveis de acumulação do capital.
Observe-se que a complexidade da questão não está na abordagem de
questões micro sociais, locais ou que envolvam dimensões dos valores, afetos e
da subjetividade humana (questões de necessário enfrentamento), mas está na
recusa da Razão e na
descontextualização, na ausência de referentes históricos,
estruturais no não reconhecimento de que
os sujeitos históricos encarnam processos
sociais, expressam visões de mundo e tem suas identidades sociais construídas
na tessitura das relações sociais mais amplas. Relações que se explicam em
teorias sociais abrangentes, que
configuram visões de mundo onde o particular ganha sentido referido ao
genérico.
Cabe assinalar ainda que, todo
este debate que é apresentado no âmbito das ciências sociais contemporâneas
como crise de paradigmas, em termos da
capacidade explicativa das teorias recoloca a
polêmica Razão/Intuição que tem repercussões significativas na pesquisa,
na construção de explicações sobre a realidade e na definição de caminhos para
a ação.
Especificamente no Serviço Social estas questões também se colocam,
apesar da vitalidade do marxismo como paradigma de análise e compreensão da
realidade e apesar da manutenção da hegemonia do projeto profissional
caracterizado pela ruptura com o conservadorismo que caracterizou a trajetória
do Serviço Social no país. Colocam-se nos desdobramentos e nas polêmicas em
torno dos paradigmas clássicos e na busca de construção de novos paradigmas; se
colocam pela apropriação do pensamento de autores contemporâneos de diversas
tendências teórico-metodológicas como Anthony Giddens, Hannah Arendt, Pierre
Bourdieu, Michel Foucault, Juergen Habermas, Edgard Morin, Boaventura Souza
Santos, Eric Hobsbawm, E.P. Thompson e tantos outros. Se colocam também nas formas de abordagem das
temáticas relevantes para a profissão nesta transição de milênio, na busca de
interligação entre sujeito e estrutura e entre concepções macro e micro da vida
social, na retomada e valorização das questões concernentes à cultura das classes
subalternas e em outras clivagens e questões relativas aos dominados tanto no
plano das relações culturais como nas lutas pelo empowerment e contra a
discriminação pelo genêro, pela etnia, pela idade. (Falleiros, 1996:12).
No âmbito da produção inspirada
na tradição marxista, estas questões
aparecem com o recurso à
pensadores que abordam temáticas da cultura das classes subalternas, do sujeito
e da experiência cotidiana da
classe como Gramsci, Heller e Thompson.
Efetivamente, os desdobramentos desta "crise" de referenciais
analíticos, permeiam polêmica profissional dos dias atuais e se expressam pelos
confrontos com o conservadorismo
que atualiza-se em tempos pós modernos.
Assim, coloca-se como desafio à profissão ao longo de toda a década de 90, e neste
início de milênio a consolidação do projeto ético político, teórico metodológico e operativo que vem
construindo particularmente sob a influência da tradição marxista, "mas
incorporando valores auridos noutras fontes e vertentes e, pois sem vincos estreitos ou sectários,
aquelas matrizes estão diretamente conectadas ao ideal de socialidade posto
pelo programa da modernidade - neste sentido, tais matrizes não são 'marxistas'
nem dizem respeito apenas aos marxistas, mas
remetem a um largo rol de conquistas civilizatórias e, do ponto de vista
profissional, concretizam um avanço que é pertinente a todos os profissionais
que , na luta contra o conservadorismo, não abrem mão daquilo que o velho
Lukács chamava de 'herança cultural'." (Netto, 1996:117)
Questão para reflexão: Quais as principais tendências do Serviço Social nos anos 90 do ponto de
vista da produção de conhecimentos e do exercício profissional?
4 - Concluindo: as polêmicas dos dias atuais
No início do milênio o Serviço Social brasileiro enfrenta a difícil herança
do final do século anterior, com seus processos de globalização em andamento,
com sua valorização do capital financeiro, suas grandes corporações
transnacionais, seus mercados, suas mídias, suas estruturas mundiais de poder e
as graves conseqüências desta conjuntura para o tecido social em geral,
configurando um novo perfil para a questão social; no qual destacamos a
precarização, a insegurança e a vulnerabilidade do trabalho e das condições de
vida dos trabalhadores que perdem suas proteções e enfrentam problemas como o
desemprego, o crescimento do trabalho informal (hoje mais da metade da força de
trabalho do país) e das formas de trabalho precarizado e sem proteção social.
Trata-se
de um contexto que interpela a profissão sob vários aspectos: das novas manifestações
e expressões da questão social, aos processos de redefinição dos sistemas de
proteção social e da política social em geral, que emergem nesse contexto[2].
Nesses anos, assim como na última década do século XX, tornaram-se
evidentes as inspirações neoliberais da política social brasileira, face às
necessidades sociais da população. Uma retomada analítica dessas políticas
sociais revela sua direção compensatória e seletiva, centrada em situações
limites em termos de sobrevivência e seu direcionamento aos mais pobres dos
pobres, incapazes de competir no mercado. Estas políticas focalizadas
permaneceram e se expandiram no governo Lula, como é o caso dos programas de
Transferência de Renda.
Efetivamente, no país, apesar dos consideráveis avanços na Proteção
Social, garantidos na Constituição Federal de 1988 e expressos, por exemplo, no
ECA, na LOAS e no SUS, esses últimos anos não romperam com as características
neoliberais que se expandiram desde os anos 90, face às necessidades sociais da
população.
No caso da Assistência Social merece destaque a Política Nacional de
Assistência Social – PNAS (2004) que propõe uma nova arquitetura institucional
e política para essa política com a criação de um Sistema Único de Assistência
Social - SUAS. O SUAS é constituído pelo conjunto de serviços, programas,
projetos e benefícios no âmbito da assistência social. É um modo de gestão
compartilhada que divide responsabilidades para instalar, regular, manter e
expandir ações de assistência social.
Desde
então, são os assistentes sociais que estão implementando o SUAS, enfrentando
inúmeros desafios entre os quais destacamos a reafirmação da Assistência Social
como política de Seguridade Social, a consolidação e a democratização dos
Conselhos e dos mecanismos de participação e controle social; a organização e
apoio à representação dos usuários; a participação nos debates sobre o SUAS, a
NOB, os CRAS e os CREAS; a elaboração de diagnósticos de vulnerabilidade dos
municípios; o monitoramento e a avaliação da política; o estabelecimento de
indicadores e padrões de qualidade e de custeio dos serviços; contribuindo para
a construção de uma cultura democrática,
do direito e da cidadania.
Outro
desafio colocado aos assistentes sociais brasileiros neste início dos anos
2000, refere-se aos Programas de Transferência de Renda, sem dúvida uma das
faces mais importantes da Política Social brasileira, conforme dados oficiais
(PNAD 2006) chegam a quem precisam chegar (11milhões de famílias) Destas, 91% tem
como renda mensal per capita até 1 salário mínimo e 75% delas tem menos de meio salário mensal de renda per
capita. Essa PNAD também revela uma questão essencial: os PTR não retiram os
beneficiários do trabalho (79.1% dos beneficiários trabalham). Ou seja o Bolsa
Família não pretende substituir a renda do trabalho e apesar das polêmicas que
cercam o Programa, seu impacto sobre as condições de vida das famílias mais pobres, sobretudo no
Nordeste é incontestável. Ele significa basicamente mais comida na mesa dos
miseráveis.
É
bom lembrar que se escapa às políticas sociais, às suas capacidades, desenhos e
objetivos reverter níveis tão elevados de desigualdade, como os encontrados no
Brasil, essas políticas também respondem a necessidades e direitos concretos de
seus usuários.
E os
assistentes sociais vêm, em muito, contribuindo, nas últimas décadas, para a
construção de uma cultura do direito e da cidadania, resistindo ao
conservadorismo e considerando as políticas sociais como possibilidades concretas
de construção de direitos e iniciativas de “contra –desmanche” nessa ordem
social injusta e desigual.
No
âmbito da pesquisa e da produção de conhecimentos o Serviço Social brasileiro
chega a 2007 com uma maturidade expressa em seus 25 Programas de Pós Graduação
direcionados à formação de recursos humanos com capacidade para atuar
criticamente na realidade social.
Do ponto de vista dos referentes teórico metodológicos, permanecem as
tensões e ambigüidades que caracterizaram o Serviço social brasileiro na década
de 1990: apesar da ruptura com o histórico conservadorismo e da legitimidade
alcançada pelo pensamento marxista ampliam-se as interferências de outras correntes
teórico metodológicas, particularmente no âmbito da influência do pensamento pós-moderno
e neoconservador e das teorias herdeiras da “perspectiva modernizadora” (Cf.
Netto, 1996), caracterizadas por seu caráter sistêmico e tecnocrático.
Há pouco mais de uma década, Netto já apontava como hipóteses para o
encaminhamento dessa tensão uma dupla perspectiva: de um lado a consolidação e o aprofundamento da
hegemonia da atual direção social e de outro a possibilidade de sua reversão ou
mudança. Afirmava o autor "..num ordenamento social com regras
democráticas, uma profissão é sempre um campo de lutas, em que os diferentes
segmentos da categoria, expressando a diferenciação ídeo-política existente na
sociedade, procuram elaborar uma direção social estratégica para a sua
profissão." (Netto, 1996:116)
Para finalizar é necessário assinalar que a reafirmação das bases
teóricas do projeto ético político, teórico metodológico e operativo, centrada
na tradição marxista, não pode implicar na ausência de diálogo com outras
matrizes de pensamento social, nem significa
que as respostas profissionais aos desafios desse novo cenário de transformações possam
ou devam ser homogêneas. Embora possam e devam ser criativas e competentes.
Glossário:
Tomismo: referência ao pensamento filosófico de São Tomás de Aquino
(1225) um teólogo dominicano que escreveu obra filosófica caracterizada por uma
perspectiva humanista e metafísica do
ser que vai marcar o pensamento da Igreja Católica a partir do século XIII.
Merece destaque na obra de S.
Tomás a Suma Teológica
Néotomismo: retomada do pensamento de São Tomás a partir do papa Leão XII em 1879 na Doutrina
Social da Igreja e de pensadores franco belgas como Jacques Maritain na França
e do Cardeal Mercier na Bélgica .Buscavam nesta filosofia diretrizes para a
abordagem da questão social.
Método de B.H.: Designação dada ao método elaborado pela equipe da
escola de Serviço Social de Belo Horizonte no período de 72 a 75 e que propunha a
constituição de uma metodologia alternativa às perspectivas das abordagens
funcionalistas da realidade.Buscava articular teoria e ação em sete momentos.
Questão para avaliação final:
Desenvolva uma reflexão sobre o Serviço Social nos últimos 20 anos:
principais tendências históricas e teórico metodológicas.
Bibliografia
- Almeida, Ana Augusta. A metodologia dialógica: o Serviço Social num
caminhar fenomenológico. In Pesquisa em Serviço Social. ANPESS /CBCISS.
Rio de Janeiro, 1990.
- Coutinho, Carlos Nelson. Pluralismo: dimensões teóricas e políticas.
In Cadernos ABESS nº 4. Ensino em Serviço Social : pluralismo e formação
profissional.São Paulo, Cortez, maio
1991.
Faleiros, Vicente de Paula. Serviço Social: questões presentes para o
futuro. In Serviço Social e Sociedade nº 50. São Paulo, Cortez, abril,1996.
Harveey, David Condição Pós moderna São Paulo, Loyola,1992
- Iamamoto, Marilda V. e
Carvalho, Raul de. Relações Sociais e
Serviço Social no Brasil. Esboço de uma interpretação histórico-metodológica.
São Paulo, Cortez Ed., CELATS (Lima-Perú), 1982.
- Iamamoto, Marilda V. Renovação
e Conservadorismo no Serviço Social. Ensaios críticos. São Paulo, Cortez Ed., 1992.
- Kameyama, Nobuko. A trajetória
da produção de conhecimentos em Serviço Social : avanços e tendências (1975 -1997)
In Cadernos ABESS nº 8. Diretrizes Curriculares e pesquisa em Serviço Social. São
Paulo, Cortez, nov.1998
- Netto, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1994
______________Transformações Societárias e Serviço Social - notas para
uma análise
prospectiva da profissão no Brasil. In Serviço Social e Sociedade nº 50.
São Paulo, Cortez, abril, 1996
- Silva e Silva, M. Ozanira (coord.) O Serviço Social e o popular:
resgate teórico metodológico do projeto profissional de ruptura. São paulo,
Cortez, 1995
- Yazbek, Maria Carmelita (Org) Projeto de revisão curricular da
Faculdade de serviço Social da PUC/SP. In Serviço Social e Sociedade nº 14. São
Paulo, Cortez, 1984
[1]
TEXTO ESCRITO PARA O CURSO DE ESPECIALIZAÇÂO LATO
SENSU EM SERVIÇO SOCIAL :
DIREITOS SOCIAIS E COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS. CFESS/ABEPSS 2009
[2] Para
alguns autores: trata-se de um contexto de mudanças irreversíveis, que atingem,
em todo o mundo, o Estado de Bem Estar Social que supunha o pleno emprego e
certamente enfrentamos o fim do consenso keynesiano, alterações demográficas e
mundialização crescente da economia e outras graves questões quanto ao
financiamento do WS. Temos aí a expansão dos Programas de Transferência de
Renda e o Welfare Mix ou o Welfare Pluralism (Pluralismo de bem estar) que
incorpora crescentemente a presença dos
setores não governamentais e não mercantis da sociedade.
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